p e d r a b r a n c a
poema feito à mão
minha vida toda foi à beira de uma estrada. inicialmente de chão batido, sem saneamento nem rede de esgoto. posteriormente, asfaltaram e sanearam parte do bairro e a estrada do icuí, morada de meus avós e minha, está lá, dentro da urbanidade.
enquanto uma pandemia chegava, vinha com ela a transição de minha vida. quem sonhava com o próprio atelier, a vivência na mata e a autonomia alimentar, como eu, mal esperava a chegada à pedra branca.
estou em transição. mudando aos poucos, para uma ilha. conhecendo as pessoas, as folhas e os bichos de uma belém Insular que sempre me paquerou. encontrei um chão para pousar, finalmente. e criar. na ponta do mapa, em cotijuba, um pedaço de mata entre a estrada de chão batido e o mar de água doce. à beira de uma baía.
a pedra branca me recebe, também aos poucos, e com boa acolhida. seus velhos e suas crianças me mantêm por perto. e têm me ajudado no levante em que se transformou minha vida. uma c.asa está nascendo. subindo esteio por esteio. com as minhas mãos, e meu coração.
tenho escrito mais, ainda em segredo. contando para mim mesma que a vida é um instante. tudo muda se estivermos em movimento. meus poemas escritos à mão estão se avolumando. sempre que a maré seca, tenho olhado cá de cima, do barranco de um quintal ainda improvisado, e vejo nas cores das argilas possibilidades de transformar minhas palavras em algo tão grande quanto aquele mar.
este projeto é a intenção de consolidar minha entrada na mata e no mar, e chegar de forma afetiva até as pessoas desse lugar. inventar meu próprio papel com as folhas da floresta e as águas da baía, pigmentos de argila, fios e amarrações com os cipós. um caderno de afetos. um livro de poemas sobre a comunidade da pedra branca. enquanto me mudo_ chego, pouso e bioconstruo minha c.asa-atelier-vida.
e ainda registro a poética interior, a intimidade da criação_ da escrita dos poemas às coletas de materiais_ e o desafio de se fazer à mão um livro, de amor. sim, muito além de uma paquera, um romance de vida inteira.
já começamos.
[ novembro de 2020 ]
_todo cultivo tem colheita todo chão a sua cor em toda folha corre sangue assim o tempo enxerga longe
t r a v e s s i a
aqui, todos os dias me atravessam
desde o verão que cheguei_
lembro dos reflexos de luz na água_
até o tamanho sem tamanho do rio
e as ondas de um mar que sempre se
aproxima
as chuvas derrapantes nos barrancos
crianças e bichos tão perto, olhando
do alto um Marajó à vista das esperanças.
homens trazem de barco tanta palha
homens e suas máquinas a punir mata adentro
caçadores de voadores e corredores
navios e seus sinais_ luzes e sons
que completam as noites das águas
as casas não param de crescer
um levante constante à beira da estrada
outras se firmam na floresta
motos aparelhagens urubus no caminho
aqui, todas as coisas me atravessam.
,
eu gosto das coisas que se desfazem
como pontes que não atravessam o mesmo rio.
r o m p e m a t o
na esquina_ curva do horizonte
linha de tambores e embarcações
giram encantadas
na ciranda
as mulheres sábias
lorena lorrane lore warnisson
o barranco da
estrada não é
maior que o olhar
daquelas quatro crianças
que moram na curva
do caminho
sobre raios e arraias
pescadores e suas barquilhas
pedras
plantas
pets desovas de arraias
redes e navios partindo
que tudo retorne com o mar
n o ê m i a
quando começa o areal
ali, desvio de seringueiras
atrás do balcão
descansa aquela que é
conhecedora das histórias do mundo
, eu gosto dela e das palavras que aprendeu na vida
b i o c o n s t r u ç ã o
o tempo da vida. semeia que brota.
son[h]o
po[t]ente
y a s m i n
ser
nascente
pássaro
semente
y u ’ r a
a princípio seria o meu lugar de lavação das roupas de santo. foi se tornando o lugar de cuidado de tudo o que o santo me dá. folhas, frutos, cascas, sementes eu lavo, espero o tempo secar. enquanto semeio outras plantas nos vasos. enquanto mergulho tajás encontrados caídos na estrada. enquanto penso. enquanto crio. enquanto choro. enquanto saúdo.
enquanto, enquanto.
meu espaço de brincar.
meu viveiro.
meu berçário.
minha cura.
meu altar.
salve o santo de minha guarda.
salve o meu òrìsà.
[para a primeira criança que conheci
na pedra branca]
[yu’ra: jirau, em tupi-guarani]
s a b i á
cigana dos olhos de ouro
coroa das águas
reluz em raiz
seus trançados de mar
j u m a
enquanto tivemos tempo
vivemos a infância uma da outra
b i o c o n s t r u ç ã o
madeira de barco
portas e janelas do meu mundo
para
deixar
sereno
mar
entrar
supor
silêncio
ouvir
parar
e d n a
das primeiras conversas de ilha,
a que sempre me acompanha,
desde lá no fundo do quintal,
até a beira da estrada,
cariño que o tempo não nega.
l ú c i a
ainda não nos conhecemos
mas nos reconhecemos bem
salve a força negra fêmea que nos une!
b a t u q u e
eu danço
minha fome vem de antes
outros tempos me entranham
até aqui
escamas me recobrem
abrem garras
a couraça se assanha
pata de bicho grito de pássaro semente nascente silêncio
poente repousa feroz na ponta da lança
descanso afiada na boca da mata
j ô
para ela que me ensina sem saber o que somos me atravessa além do encontro .
b u ç u ; u b u ç u
palmeira de ilha, varzeia as águas grandes encantadas pras bandas daqui. pede a peconha, dá o tururi, dá fruto de cura, dá cabôco, faz reboco, dá a palha que sombreia meu barraco. eu plantei bambu, buriti e aroeira pra agradecer a sua chegada, bem na boca da lua nova. seu tempo obedeci. me ensinou a olhar pro céu mais uma vez. nenhuma palavra dos hômi sustenta a pisada da natureza...
n é i a
conversas de entardecer
nossas e da curva do horizonte
a cada tarde de ida ao bar
vinham sutilezas que o tempo ainda não me disse
mas que tu me ensinaste
p a u l i n h a
pinta as cores da flecheira
em silêncio um despertar
menina de ilha
desvia dos dizeres de fora
recria encantaria
a r t h u r ,
que chora comigo a saudade guardada,
te escrevo esperando a próxima visita,
te encontro na estrada,
pedalo contigo,
fugimos até a makaia,
brincamos de nós,
os dias passam, agora eu sei,
menino amigo,
teus olhos me dizem.
c . a s a
me mudo com todos os kharmas os panos as presas encruzas panelas me mudo
com todas as crises peneiras os baques vitrola sementes folhas chaleira me mudo com tantas saudades araras os livros poemas palavras me mudo com tudo que vivo meu corpo caminho couraça destino me mudo somente com a fé minha rede meus guias os vultos e bichos e garras pegadas escamas me movo no fluxo me mudo pro chão que me chama me trouxe de volta pro mundo me dança me mudo o mar que
me espalha o som o silêncio me embalo na barca me avoa me grita me ganha no escândalo que é
pousar
,
eu queria um dia dormir
com todas as praias no meu corpo
as areias
os mares
os sais e os doces
me embalar numa rede
com todas as águas
[ para sofia ]
r i s a l v a
a praia do bosque ficou na lembrança daquele menino que nunca perdeste
te guarda no riso da mata
na asa do teu nome
apelido sincero
voo inevitável
nem assobio nem recado
um chamamento
pra vida
á u d i o b o o k
https://soundcloud.com/pedra-branca-cotijuba
SOBRE A PEDRA BRANCA
Cotijuba é uma das ilhas que compõem a Belém insular, no estado do Pará.
Banhada pelas Baías do Guajará e do Marajó, possui 12 comunidades que ocupam 18 km de um território dividido entre agricultura familiar, pesca e culturas de manufatura e a extração de areia e madeira ilegal.
A comunidade da Pedra Branca resiste, ainda, em um ambiente natural, com lagos, praias e mata que agregam as localidades da Pedra Branca, do Seringal e do Poção.
Nossa comunidade tenta se manter economicamente com a prática pesqueira, pequenos cultivos de hortas e algumas artesanias como cerâmica, carpintaria naval (produção e manutenção de barcos), casas de farinha e carvão.
Outras soluções de trabalho apontam novas demandas trazidas pela urbanização, e que têm gerado impacto social e ambiental: a prestação de serviço de mototaxista (muitas vezes não habilitades e, muitas vezes, executado por menores de idade); e a extração ilegal de areia e madeira, que gera uma renda maior e de forma mais rápida, entretanto deixa a floresta no chão.
Por ser considerada uma zona rural da Ilha de Cotijuba, a comunidade da Pedra Branca, além de afastada geograficamente da área central da ilha, sofre com o distanciamento de serviços públicos básicos como atenção e cuidados à saúde, educação, saneamento, transporte e segurança.
O índice de crianças e adolescentes é o que mais tem crescido em nossa comunidade, dividida entre ribeirinhos, quilombolas e afrodescendentes.
A maior parte da população é evangélica.
f i c h a t é c n i c a
autoria
raphíssima [raphaella marques]
filmagem e edição
hugo do nascimento
a g r a d e c i m e n t o
À Mãe Márcia de Xangô
Ao Templo de Umbanda Caboclo Rompe Mato
Este Projeto é parte de uma pesquisa de vida,
em poéticas ancestrais. E foi contemplado pelo Edital de Livro e Leitura, da Secretaria de Estado de Cultura
[Secult-PA], por meio da Lei Aldir Blanc.
Este projeto
é dedicado
à Cabocla
Mariana
para ouvir os poemas principais do livro,
acesse o á u d i o b o o k :
https://soundcloud.com/pedra-branca-cotijuba